(des)Afetos

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Dona Maria

Aos 70 anos, Dona Maria era uma mulher realizada. Fizera um bom casamento, claro não era o príncipe encantado, longe disso. No seu homem tudo era pequeno, começando pelo cérebro. Ainda assim não tinha por que se queixar. Afinal o que poderia esperar do futuro uma simples doméstica?

Mal aprendera a ler e escrever.
Na sua época, mulher pobre só saia de casa casada. A ela, faltou-lhe o pretendente, e o pai, receoso de ter que sustentar a filha solteirona,  tratou de arrumar-lhe um emprego em uma casa de família que funcionava como pensão. Frequentou as aulas de alfabetização na igreja. Nesse contexto, ela se achava agraciada. A sorte poderia ser outra. Bem sabia que se o cérebro do marido não funcionasse em marcha tão lenta, seguiria como mera doméstica e solteirona pelo resto da vida. Assim deixara de ser simplesmente Maria, para virar dona. Claro que foram necessários anos para que tal acontecesse, já que casar com o filho da patroa em nada alterou o seu status.

Fora a tia dele quem arrumara o casamento.
Afinal, um retardado na família era sempre problemático. Então, mais que lamentar, tinha é que agradecer o cérebro de galinha do homem. A esperteza dela valera pelos dois e com o tempo aprendera até a gostar do atrasadinho. Era como um cachorrinho esperando alguém passar-lhe a mão no pelo e oferecer-lhe um osso.  Até hoje bastava acenar que ele vinha correndo. Houve um tempo em que ela até esperava que ele fizesse auau. Desconfiava muito que se lhe achegasse a mão à boca ele a lamberia docilmente. Por certo que nem assim foram tudo rosas. Ao longo da vida, além da labuta brava, uns odores de cio nas redondezas chegaram a desviar as atenções da fidelidade canina.

A dureza começara logo no início do casamento.
Morando na casa da sogra, tivera que amargar com os modos secos e autoritários da italiana, tendo, ao mesmo tempo, que seguir sendo tratada como a Maria. Passou anos remoendo o ódio, aguardando o dia da vingança. Nos filhos vislumbrou a desforra. Era uma satisfação muito particular perceber neles o mesmo desprezo, a mesma revolta por uma avó a quem só respeitavam para contentar o pai. Mas mordia-se de raiva quando via o marido abanar a cauda de felicidade para aquele traste a quem chamava de mãe. Ah, como ela se pagava pintando, desde muito cedo, um quadro bem negro na cabeça das crianças, dos sofrimentos que a 'velha' lhe imputara. No início, a mente infantil associava a avó aos monstros folclóricos que povoam o universo das crianças. Depois era apenas alguém que não tinham, não queriam, não podiam, nem deviam gostar. O jeito autoritário da 'velha' alimentava a fama. Cresceram escutando sua mãe falar-lhes que a velha era bicho ruim, humilhara a mãe deles, tratando-a como se ela nunca tivesse deixado de ser a doméstica da casa. Nunca, mas nunca, os deixou esquecer tal coisa.

E no final, Deus fizera a sua parte.
Os modos ríspidos e a voz autoritária eram como o barulho de um velho pano sendo rasgado em trapos. Ninguém mais se incomodava com os modos secos do raio da velha. Ainda assim, durara até demais. Mas o que fazer? Se, por um lado, o filho nascera com a inteligência de uma estúpida mula, a mãe, apesar de magricela e seca, parecia ter adquirido a robustez do mesmo bicho, sendo até boa de coice. E, precisava admitir, "o bicho ruim" era mais esperta e espevitada do que ela própria e o marido juntos. Mas não há inteligência nem esperteza, que escape à ira divina.

Uma trombose lhe levara a perna.
Ah, como ela rira interiormente da mula manca, como passou a chamá-la na socapa. Depois foi só ficar olhando a morte cercar a velha. A pele macilenta no rosto enrugado, o olhar azul se apagando, até que chegou a hora. “Bem feito, aqui se faz, aqui se paga”.  O melhor da história foi ver a própria família dela comentar a boca baixa como a Maria era boazinha, cuidara tão bem da “mamma”.  Ainda por cima virou heroína. “Engole mais essa, bruxa velha!” Pensando bem, àquela altura, começava a achar-se mais sabida e muito melhor de coice. Sabido era que quem a cara escancara, logo vira bicho ruim na boca do povo. Assim foi que, em torno da italiana brava, era só desamor. Pessoa que a agastasse levava logo o coice na cara dura. Sem mimimi nem mememe. Já ela, Maria, fora sempre pessoa boa, com a merecida fama. Aprendera, pelo menos, uma coisa com a estúpida velha -, quem ‟amostra a venta se agasta".

Todo o dia agradecia a Deus por ter caído nas Suas graças.
Oh, sim! Em tudo, na sua vida, sentira a mão do Altíssimo. Ninguém melhor do que Ele para saber o quanto merecia as graças. Mais fiel que ela... Ia aos cultos, não sempre, mas Deus e o Pastor bem viam o sacrifício que fazia para arrastar a gordura pelas duas quadras que da igreja a separavam. Os filhos? Uns pintinhos. Modéstia à parte, educara-os muito bem, sempre lhes lembrando o sacrifício que por eles fizera. A mais velha, Mara, ajudara-a a criar os irmãos e, até hoje via, na maior alegria, o sacrifício que aquela filha continuava fazendo por eles. Tudo bem que teve uma fase de assanhamento e acabou casando prenha. Mas, se vez ou outra, Deus lhe pregava um susto, logo a compensava em cascatas de graças. O genro se revelou uma jóia. Nunca meteu o bico em nada. Aquela filha era o sonho de toda a mãe. Era seu anjo da guarda. Como uma secretária particular que de tudo cuidava. Ia pra cá e pra lá. Chofer, enfermeira, cozinheira. Tudo ela fazia pelo conforto dos pais. Renunciava até mesmo, aos próprios prazeres, assim quando o marido e os filhos iam se divertir ficava ela em casa, entendendo que sua parte dos custos deveria usar para os pais.

Agora a outra filha merecia um capítulo destacado.
Não havia porque esconder a preferência. Nascera ela com a esperteza da mãe. Fizera um bom casamento. Essa sim, sonhara alto, programara bem a vida para saber aproveitar a hora. Se enfiou debaixo do homem certo, antes que escapulisse como os outros, afinal a concorrência era farta. Embuchada logo casou, entrando para uma família bem posicionada. Oh, sim, essa é que foi esperta. Um tamanhão de homem bem domesticado. Um tipo daqueles precisando de empurrão para sair do lugar. Naquela casa quem cantava de galo era a sua menina. E como gostava de visitar aquela filha. Ali se regalava de tudo o que vira em sonho. Era tratada como grande dama. Chamava a empregada a toda a hora. Como era bom mandar e desmandar. Quando, por sua vez, a visitava a filha, gostava de exibir-se pra vizinhança, mostrar a sua importância. Alegravam-na os olhares invejosos, fazendo-se  de modesta com os elogios que recebia.

Colocava cadeiras na calçada e ali ficava com o seu velho.
Via a vizinhança apreciando e avaliando os belos carros dos filhos. Tinham ido longe, pelo menos três deles. O melhor de tudo é que lhe devolviam o sacrifício. Afinal colocara-os no mundo, trabalhara para eles, ensinou-os a dar o couro bem cedo, para que fossem alguém na vida e devolverem aos velhos pais a vida por eles sacrificada. Completados os sete anos, colocara-os logo na labuta para que sentissem o gasto do próprio couro e darem valor à velha mãe. Graças a Deus, suas crianças aprenderam bem os ensinamentos. Cedo começaram a  ajudar os pais e logo eles puderam se aposentar. Claro que não pelo governo, imagina se tivesse trabalhado tanto, estariam doentes e estropiados. Tiveram a sorte que muitos não tinham, mas isso tudo porque ela os soube educar, pela graça do Senhor Jesus. Claro que tinha um deles que havia tido a má sorte de nascer com o cérebro vazio do pai. Mas os outros compensavam, e muito, o buraco.

Sempre fizera vista grossa aos olhares de cachorro louco do marido em cima das moças.
Quem ia querer se oferecer para um velho babão e ainda por cima, retardado? Com a idade, o velho foi piorando e logo estava passando a mão em crianças de tenra idade. Foi uma época conturbada em que nem as filhas levavam as netas com receio que o avô, tomado pela doideira, cometesse um sacrilégio. Deu o que falar, na família e na vizinhança. Os filhos vieram correndo. Depois de muita conversa, concluíram que o pai precisava de ocupação. Fizeram obras na casa e logo o velho tinha o seu brinquedo, um mercadinho. A vizinhança vinha inteira comprar do velho “Lelé″. Lucro mesmo não tinha, desconfiava que nem pra pagar as despesas. Tudo saia da verba choruda que dois dos filhos enviavam religiosamente todo o santo mês.

A caderneta onde o velho anotava as despesas dos clientes virara piada.
Era só se aproximar o final do mês e puft, sumia. O velho ficava com aquele olhar abobado, aquela fala titubeante de quem não consegue falar e pensar ao mesmo tempo. Se sentindo a boba do bairro, Dona Maria tratou de ficar de tocaia. Foi quando viu a jogada. Uma garota, de tenros 11 anos, se tanto, fazendo olhares lânguidos. O bobo do velho, dava tapinhas na mão miúda, enquanto olhava o peito murcho e impúbere. Nisso, surge um garoto de olhar vivo e surrupia do balcão o caderno. Com toda a agilidade que lhe permitiu o corpo balofo, Dona Maria saiu das sombras, o descarado ainda gritou da porta com ar de troça “Obrigado, seu Lelé!”. A garota puxou a mão, passando-a com ar de nojo no short, se despedindo. Dona Maria inconformada com a safadeza saiu de trás do balcão e conseguiu agarrar-lhe o braço. Foi um susto daqueles, para a garota e para o velho. A assanhadinha logo se recompôs, já o velho não sabia o que fazer de tão atrapalhado. Dona Maria perguntou à garota se a mãe estava sabendo das assanhadices. Sem se perturbar, a pestinha puxou o braço e respondeu altivamente (ou seria em ar de troça?) “Não, minha mãe ainda não sabe que seu Lelé fica me oferecendo bala pra eu ficar atrás do balcão com ele.” Saiu em seguida pisando forte. Dona Maria quase desfaleceu. Precisou sentar-se logo, pois não fazia muito tempo tivera um enfarte, levinho, só um aviso, mas valera como susto e agora ali estava de novo quase perdendo o ar.

A partir daquele dia, inventou de fazer crochê abancada junto à porta.
Olhava de soslaio para todos que ali entravam. Percebeu olhares cúmplices, espantados e decepcionados e não foi só de criança. Desta vez não chamaria os filhos. Já lhe bastara a vergonha que passara por ter que dividir tal segredo com os trastes das noras. E por falar em nora...

Ainda hoje se lembrava do susto.
Foi o dia em que seu caçula surgira com o papo de casamento, trazendo a tiracolo uma sirigaita com ares de princesa. Mas em pouco tempo lhe mostrara que ali não era lugar da realeza. De tudo fizera para que a “tarzinha” se pusesse a milhas, mas a cadelinha não quis saber de largar o osso. Mais uma vez lhe valera a educação que dera a sua trupe, e a mão de Deus. Ela bem sabia que era uma das poucas escolhidas Dele. Quanto àquelas noras tinha certeza que não estavam nem na lista dos chamados. Umas inúteis vivendo nas costas dos seus meninos. Achara por bem recordar aos dois que os pais aguardavam o retorno do sacrifício antes que aquelas lambisgóias se atrevessem a tomar o seu lugar. Tudo bem que daquele de inteligência fraca, nada podia esperar, até porque o coitado não tinha culpa. Bem feito para a inútil que pensou que fizera grande feito. Graças a Deus lhe tirara tamanho peso de casa. Agora o outro, o caçula, daquele sim, esperara muitos frutos e não se decepcionara.

Achava sempre necessário recordar ao filho, o quanto penara para o colocar no mundo.
Hum, imaginem se algum rabo de saias iria alterar seus planos. Bem que a serigaita às vezes fazia um draminha. Queixava-se da falta de dinheiro, das dívidas, da vida parada, que nunca havia dinheiro para uma viagem, um restaurante... as crianças queriam as coisas mas o pai só sabia resmungar de tanta despesa. “Imaginem! ‘Aproveitar a vida! Pode?’, INÚTIL”. Fosse trabalhar, educasse melhor os filhos, pois ela nunca dera moleza aos seus. O que sairia dali? Uns vagabundinhos iguais à mãe! O filho que se cuidasse, que abrisse os olhos! “Trabalhando aquele tanto...”, a filha já havia insinuado que o irmão trabalhava demais, corria até o risco de...  Dona Maria interrompeu o pensamento assustada. “Deus nos livre, a mim e ao velho de tal coisa! Depois de tanto sacrifício, uma zinha qualquer fazer o seu filho trabalhar feito asno, pra lhe satisfazer os caprichos. Havia que falar urgentemente com ela, abrir os olhos da anta. "Ai se eu te pego!”. Se pudesse esganava a mulherzinha! Não é que a lambisgóia vivia tentando atrapalhá-la?

Primeiro fora a lojinha do velho.
Falara que aquilo era loucura, “insanidade da família, querer tapar o sol com a peneira”. Ela bem que escutara a conversa entre o casal. A lambisgóia enchia os ouvidos do filho ...que ele não tinha o direito de “tirar dos próprios filhos” para jogar pela descarga tanto dinheiro, só pra encobrir a maluquice do pai. Era bem seu filho. Ele dera-lhe uns tapinhas, o sorrisinho maroto no canto da boca, assobiara-lhe algo ao ouvido e depois, nas costas dela, seguira os conselhos da mãe. Claro que Dona Maria tinha gosto em mostrar que seus filhos eram uns pintinhos. Bicavam na mão dela. Adorava ver a nora se morder por dentro, quando jogava umas indiretas pra ela entender que a vida do filho era ela, sua mãe, quem controlava.

E outra vez a danada inventou de enfiar o bico.
Foi quando Dona Maria, ressabiada porque soubera que a cunhada tinha um plano de saúde “tão bão”, passara a comentar com a filha, a sorte da Rosinha, que ganhara dos filhos plano de saúde com quarto particular. Vivia comentando e suspirando. A frase decisiva foi quando falou fazendo drama, “Já imaginou, seu pai e eu, velhos desse jeito, podendo dar um treco a qualquer hora? Como vai ser? Até agora foi coisa a toa mas daqui pra frente, o plano que tinham não parecia essas coisas... 'quarto coletivo'..., Imagina!", fazia cara de medo, levando a mão ao peito... Não deu outra. Seus dois filhos abastados, logo colocaram a irmã mais velha em campo para ver o tal plano de saúde antes que a mãe tivesse um treco. Dona Maria conhecia bem a filha que tinha. A palavra e a expressão certas e pronto, sofá novo, máquina de lavar roupa, as obras na casa... nada, não havia nada que eles não lhe dessem. “Filhos bãos são os meus” dizia. Mas aí, eis que aparece a sirigaita falando no ouvido do filho “Que estava cansada de a toda a hora ele falar que não tinha dinheiro, mas pros caprichos dos pais, até dívida arrumava. Será que ele não percebia o egoísmo e a chantagem da sua mãe?” Mais uma queda de braço no papo. Sorte daquela zinha seu filho ter puxado à mãe, ser um homem “bão”. Mas tinha hora que desejava que seu filho fosse mais enérgico e lhe espetasse uns belos sopapos.

Mas os caprichos de Dona Maria não tinham fim.
Eis que vem o convite para as bodas de casamento de sua cunhada. Dona Maria se mordeu e remoeu de inveja. Não parava de comentar a sorte da comadre. Os filhos não deram um simples presente, não, dizia. Aquilo era como mostrar pra todo o mundo a importância de uma mãe. "Um sonho! Era o que era. O sonho de toda a mãe." E lá foi ela assobiar no ouvido da filha todo o dia. Aquele teatro! Nunca mostrando que estava pedindo. Ela conhecia bem seus filhos. Para a mais velha, era só mostrar de forma inocente a felicidade que seria satisfazer tal desejo. A filha achando que tivera uma grande idéia para o presente do dia das mães, tratara de ligar para os irmãos abonados o gosto da mãe.  Assim, foi com fingida surpresa que seus filhos lhe deram as boas novas. Os outros vieram de longe. E a cara de estúpida da nora? Conseguira até sentir um pingo de pena.

Mas à noite quando a zinha jogou na cara do seu filho que “seus pais vivem no sítio do Pica-pau Amarelo e você devia trazê-los pra realidade, falar-lhes do custo de vida, dos altos juros que pagamos pro banco...” Dona Maria teve certeza que aquele casamento não podia ir muito mais longe. Seu filho teria que perder a paciência um dia. Mas não parou ali. Pior foi escutar a estúpida mulher cuspir na cara do filho ofensa atrás de ofensa.

“Não vai dizer nada? Pelamordedeus!
Quando é que você vai parar com os caprichos deles?... Seus pais? Meu amor, me desculpe o que vou dizer, mas você nem sabe o que é ter pais. O pai é você, sempre foi você, um coitado, com filhos velhos, mal agradecidos, mimados e abusados. E sabe que mais? Eu não tenho mais certeza quem é o retardado, se seu pai ou você e seus irmãos. Você não percebe que sua mãe faz de vocês o que quer? Veja sua irmã! Coitada, não tem vida própria. O marido viaja, sai pelo mundo, até você sabe que ele dá umas puladas de cerca e ela fica lá, naquela vidinha besta. Nunca saiu da cidade, uma ignorante com quem o marido não tem nem papo. Vai da casa dela para a dos velhos, depois retorna. Todosantodia! E só! Ela é secretária, doméstica, guardinha, motorista particular... E nós? Nunca temos dinheiro pra nada, vivemos endividados pra pagar os caprichos deles. Você percebe a estupidez da coisa? Se eu saísse contando essa doideira, ninguém ia acreditar. Às vezes tenho vontade de gritar de raiva, de contar pra meus pais, mas quer saber? Eu tenho vergonha por nós dois. Pau mandado de retardado é o que nós somos! Até quando, deus meu?! Logo, até eu vou endoidar!”.

... Silêncio...

Escondida no corredor do quintal, na semi obscuridade, Dona Maria bebia cada palavra.
Naquele momento apertava os punhos. O olhar era puro ódio. Naquela hora, já de camisola, encostada na parede, o cérebro dela paralisara. Uma palavra ecoava em sua mente “Retardadoretardadoretardado...” Sem nem lembrar de fazer silêncio, ela deu meia volta, empurrou a janela escancarada com tanta força que dentro do quarto, Ana e Tite se sobressaltaram. Os dois se entreolharam e correram a abrir a persiana, no mesmo momento, em que Dona Maria dava a volta e já entrava pela cozinha. Dentro da casa, no corredor, Ana abria a porta do quarto, ao mesmo tempo que Dona Maria fechava a sua ao lado.

Tite vivia em constante conflito consigo mesmo e com a esposa.
A gastrite lhe acusava o estresse e a consciência, mas a devoção aos pais o mantinha calado, mudo e cego às artimanhas de Dona Maria. Já Ana enxergava o que a todo custo o marido e cunhadas tratavam de acobertar. Foi assim que decidiu jogar duro. Virou-se sem fechar totalmente a porta e disse sentenciosa. Alto e bom som: “Pra mim chega! Cansei a minha beleza. Não vou morrer nem de úlcera nem de câncer. Quero mais é viver e dar uma vida saudável às minhas crianças. Meus filhos têm toda uma vida pela frente. Merecem respeito e pais responsáveis.

Ainda encostada à porta, Dona Maria ouviu música.
A voz da serigaita parecia ter ganho notas, soando como música aos seus ouvidos. E foi assim que ela esqueceu a ofensa. Estava livre, e de repente ela começou a cantar. O velhote abriu os olhinhos míopes, e foi aos poucos entendendo que a sua velha cantava. Ficou olhando para ela maravilhado, até os olhos enormes, geralmente assustadores, por trás das lentes grossas, lhe pareceram lindos. Percebeu-a arfante e de repente estava excitado. Estendeu os braços e Dona Maria percebeu tudo, num piscar de olhos.  Jogou-se na cama com a agilidade de uma mocinha oferecida, correspondendo ao abraço do seu velho, desavergonhado como sempre fora. Foi assim que Dona Maria suspirou e deu gritinhos abafados como há muito não o fazia. Mas que velho desavergonhado, pensava ela consolada. Dormiram nas nuvens, o velhote franzino aninhado, feito bebé, junto ao corpanzil de Dona Maria.

Acordou leve.
Cantante, distribuiu tapinhas e abraços na netaiada que vinha e ia, como sempre, nas filhas que nada entendiam, mas se contagiavam com a euforia. A mãe raramente abraçava. Precisava ser notícia muito boa para deixá-la em êxtase. Ultimamente vivia tão mal humorada, ríspida até com as crianças, que todos ficavam sem graça. Caminhavam em bico de pés, falavam sussurrando uns com os outros, e quase miavam com ela, pois pressentiam a ameaça de um ataque, e ninguém queria acender o pavio.

Assim foi uma surpresa mais que agradável encontrar Dona Maria naquela leveza.
Todo mundo se entreolhava intrigado, e todos encolhiam os ombros aturdidos. Abanavam a cabeça, fazendo gestos com as mãos, mostrando de todo o jeito a ignorância do que quer que fosse que parecia estar acontecendo. Será que alguém próximo ganhara a mega? As euforias de Dona Maria tinham sempre a ver com dinheiro, bens, favores, presentes que lhe caiam em mãos.

De repente Dona Maria parou de xeretar as panelas.
Levou o dedo à boca, pedindo silêncio, e aproximando-se da porta onde estava o filho e a nora, encostou o ouvido. Todos pararam e se entreolharam. "Huuum!" Junto ao fogão, a empregada falou baixo dirigindo-se às filhas sentadas à mesa:

Mas... Não tem ninguém ali.
Não?
Seu irmão saiu cedinho, colocou as malas no carro, as crianças estavam dormindo, a D. Ana já estava acomodada. Nem me viram.

As duas irmãs se entreolharam assustadas, agarrando a mão uma da outra.
Mara, sendo a mais velha, decidiu tomar a frente. Sua voz tremeu quando chamou a mãe. Sem escutar, Dona Maria continuava com o ouvido encostado à porta, sua mão sacudiu atrás das costas sinalizando silêncio. A filha aproximou-se e tocou-a de leve. “Mãe?” Virou-se contrariada. “O mano foi embora.” Dona Maria pensou não ter escutado direito. A filha repetiu. “Besteira!", falou, "Seu irmão nunca iria...“ Abriu a porta e parou aturdida, o olhar circulando repetidamente. As camas feitas, as mantas dobradas nos pés, os colchões encostados na parede... Nada fora do lugar. Ela voltou lentamente e sentou-se, ainda desnorteada. Percebendo a filha pegar o celular, recompôs-se de imediato. Sacudiu o dedo energicamente, fazendo cara feia. “Não!” enfatizou dura. Apenas isso. As duas irmãs voltaram a se acomodar em volta da mesa, tensas. Ninguém se atrevia a falar. Os grãos do feijão espalhados na mesa, que ainda à pouco as duas irmãs separavam, estavam agora esquecidos.

O telefone tocou rasgando o silêncio pesado.
Mara demorou uns segundos a levantar-se. Pegou o fone sem atender, olhou o visor e disse encarando a mãe “É o mano”. Ante a mudez da mãe, Mara ergueu o braço trêmulo, sem saber o que falar. Cumprimentou o irmão com voz tremida. Incapaz de seguir, estendeu o fone à mãe, que o pegou ríspida, indiferente às lágrimas da filha.

Dona Maria escutou por um longo tempo, depois pousou o fone na mesa.
O silêncio era apenas quebrado pela água das batatas borbulhando. De repente, o caos manifestou-se numa sequência de movimentação aleatória e ruídos dissonantes. Um corpo pesado se ergueu, a mesa levantou de um lado e rebateu, os grãos de feijão deslizaram rápido para o chão, misturando-se novamente os ruins e os bons, uma cadeira caiu estrondosa, quase atingindo o cachorro que dormitava. Aos ganidos e correria espavorida do bicho, seguiu-se o barulho de talheres e louça atingindo o chão. Acima de tudo isso, a voz de Dona Maria, que estourara e ecoara pela vizinhança. Uma gritaria histérica, raivosa, ensurdecedora:

- “Vaaaaaacaaaaaaaaaa!... A-que-la Vaaaaaaaaacaaaaaaaa!... Su-a vaaaaaaaacaaaaaaaaaaa!..."

                                                     

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