(des)Afetos

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Urtigão e Júlio Cézar

Urtigão pertence àquela camada mínima de bravos, que ao invés de culparem a vida e a má sorte, foram à luta, desbravando caminhos, desviando-se do infortúnio, driblando o destino. Criado no sítio, quarta geração, até onde sabia, de miserável família de sitiantes, originária não sabe de onde nem de quê, suspeitava que um pouco de todo o lado e de tudo, negro, índio, português, italiano..., iniciou na labuta muito cedo –, sete anos.

Agora nem Urtigão ele é mais.
A criança franzina e maltrapilha sentada na traseira da carroça que gritava pelas ruas de Frutal: “Abacaxi! Olha o abacaxi!” transformou-se no importante e solicitado Vasconcelos de Albuquerque. Pois é! O infeliz nome escondia pomposo e surpreendente sobrenome. Tudo em Urtigão, ou melhor,  Dr. Albuquerque, diretor do sindicato dos metalúrgicos, transpira prosperidade – o andar aprumado, a barriga proeminente, ternos e camisas cortados sob medida e dispendioso charuto na mão.

Era o ano de 1995 e naquele dia, uma quarta-feira ensolarada, Dr. Albuquerque afastou-se da janela eufórico, a papada reluzente, aproximou-se da mesa, discou um número, deixou-se cair na cadeira e tamborilou com os dedos no tampo. Ele ligava para um importante jornal e aguardava seu amigo Júlio Cézar. Foi logo dando a novidade. Conseguira a tão esperada verba para contratar um editor. “Pensei em você, JC.” Do outro lado da linha, silêncio, depois... “Sei, sei. Você é muito ocupado, entendo, mas 'véi' tou precisando de alguém com seu calibre. Não, não precisa responder agora. Mas então e a patroa como vai? ... O quê? Ah, o salário? Nããão, não é de se jogar fora, nem pra você, meu amigo!” ... “Não, não! Pelo contrário, não vai alterar nada de sua rotina. Depois, pra um  expert como você, o trabalho vai ser... nada”. Júlio César cofia o bigode. Sua educação refinada  ofende-se com o “patroa”, o “véi” mas... é caso para se pensar... Urtigão é bem relacionado, amigo de políticos. Só cego para não ver que os dólares chovem no bolso do ‘sitiante’ e com uma renda choruda a mais, poderia dar o tão ambicionado presente que Maria Luísa almejava. Ela iria ficar um bom tempo sem pegar no seu pé. Quando ele surgiu com a BMW preta, ficou felicíssima até descobrir que não era para ela. Agora se ela ganhar a sua própria vai ficar mansinha, mansinha. Suas escapadas noturnas poderão seguir sem atropelos. Claro que ninguém precisa saber que vai trabalhar num “antro”. Júlio César hesita, ainda cofiando o bigode, pensa... Urtigão assobia em seu ouvido a quantia e na hora ele aceita. Desliga o telefone, cantarola “If I was a rich man...” , entra na internet e vai direto ao site da BMW. Maria Luísa adora amarelo.

Júlio César é homem de megalópole.
Nascido e criado em São Paulo, sempre viveu no luxo. Viajado e manjado na boa educação, fala bonito. Nem sabe o que são dificuldades. Filho de alto industrial, foi o único dos irmãos que não aportou nas empresas de “papai”. Desde cedo sentiu fascínio pelo jornalismo. Seu sonho era abrir um dos grandes jornais do país e lá ver seu nome. Fora tudo muito fácil. O meio em que circulava permitia-lhe conhecer estrelas de muitas áreas. Recebeu convites para aparecer nas redações. Um dia faltou à faculdade e foi direto a um grande jornal. Naquele horário não achou ninguém conhecido. Seguiu em frente. Foi levado à presença de um tal de Américo, um redator. Escutou um grande discurso sobre a  legislação que rege a prática do jornalismo, normas do jornal, manual de redação... Enfim, preencheu uma ficha. Firme e eloqüente, aproveitou bem o espaço. Logo estava em frente ao editor-chefe. Este falava ao telefone. Algo sobre corrida de cavalos e apostas. Quando o homem desligou, Júlio César falou que seu pai era também aficionado por cavalos, tanto que até comprara um haras, onde possuía bela coleção de puro-sangue.

Até hoje Júlio César conta essa história. Na faculdade, passou a ser invejado e admirado por sua audácia e boa estrela. Tornou-se mais popular do que já era. Todos queriam uma vaga no seu rol de amigos chegados, inclusive os pedantes do curso de Marketing. De lá para cá sua estrela não deixou de brilhar.

Júlio César entra na sala de Urtigão. “JC! Elegante como sempre, meu amigo.”, “Que é isso, Pázinha! Você também está muito bem”. Os dois amigos se tratam como nos velhos tempos. Ambos os tipos faziam sucesso na faculdade. As meninas achavam másculo aquele rapagão alto e peludão com modos de taberneiro e suspiravam pelo charmoso riquinho. Foi no refeitório da faculdade que surgiu o apelido. A cota era igual para todo o mundo, mas para Urtigão nunca foi suficiente. Ele raspava o prato e depois com voz chorosa pedia “Mais uma pázinha, só mais uma pázinha!”.

Quando Júlio César passou para o curso noturno logo percebeu que se quisesse terminar a faculdade sem atropelos, deveria entrar para o grupo de trabalho do Urtigão. Afinal, agora, além da faculdade e das farras tinha seu trabalho no jornal. Já Urtigão, acostumado a muito trabalho para pagar a faculdade, o único dia da semana em que se permitia farrear era o sábado, com sua vizinha, assim que a turma esvaziava o AP que dividia. Marcela era uma fogosa baixinha, de pele tão branca que Urtigão divertia-se em acompanhar cada veia, com o indicador, como se de uma trilha de mapa se tratasse. Claro que dependendo onde a trilha parasse, a brincadeira podia esquentar muito. Marcela ficava tão doida que paralelamente a seus gritos “Ai Tigão... ai Tigão...” escutava-se batidas de cabo de vassoura vindas de baixo acompanhadas de gritos de gente indignada “Vai pro motel, que aqui tem família”, já de cima era uma claque entusiasmada. No final, os arrulhos de felicidade de Marcela eram seguidos de um vozerio entusiasmado “Aí, Tigão!”. Apaixonado pela vida, Urtigão estava disposto a ir ao inferno pra pegar o que dela queria. Sempre fora excelente aluno. Sua inteligência e interesse foram estimulados por Tia Adelaide, a professorinha lá do sítio, que sempre soubera que “Tigão” iria longe. Na maioria das vezes a refeição que fazia no refeitório da faculdade no final da tarde, era a única do dia, o que explicava o apetite. Era também o horário em que seu grupo se reunia para fazer os trabalhos. Por vezes JC nem aparecia, mas ninguém fazia caso. Afinal o colega rico os levava a lugares que nem sonhariam, instigando a vontade de Urtigão em ser importante um dia.

Após colocarem as novidades em dia, Urtigão passa uma tarefa a Júlio César. Tratava-se de escrever um artigo sobre essa história de fusões e aquisições de empresas, “Só pra sossegar o povo. Você conhece o pesadelo do trabalhador. Dá uma caprichada, e olha, não esquece que a política aqui é agradar todo o mundo, patrão e empregado. 

Dias depois os dois encontram-se novamente na sala de Urtigão que oferece o Whisky e o charuto de sempre. Ele pergunta para Júlio César da saúde da “patroa” e dos “pirralhos”. Júlio César responde educado, escondendo atrás de um sorriso o desagrado por aquele palavreado. Urtigão, também todo sorrisos, saboreando gostosas baforadas do charuto, presentão carinhoso do amigo Lula, com toda a psicologia adquirida no meio em que foi criado, empurra uns papéis para JC e fala: “Estive lendo seu texto. Está muito bom, como sempre, ah...ah...ah, para os leitores do seu jornal, mas aqui, JC, a coisa é bem diferente. Risquei bastante coisa, pode cortar metade. Precisa ser curto e grosso. Nossos leitores são operários, não entendem palavras bonitas. Nada de ‘economês’ nem ‘sociologuês’. Trabalho para eles é trampo, dinheiro é grana, dólar aqui não existe. Meu amigo, volte para sua sala e chame o Airtom. Escrever ele não sabe direito, mas de ‘operariês’ ele entende muito.

Eis-nos perante um Júlio César humilhado, vermelho até a raiz dos cabelos, segurando-se para não pular na papada lustrosa do Urtigão. Tudo em nome da boa educação e da prestação da BMW de Maria Luisa.   


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